Cozinhar nos remete a ir para a cozinha! Via de regra, mulheres assumem esse papel de “ir para a cozinha” por imposição cultural ou machismo, e comumente vemos mulheres hábeis transformando essa obrigatoriedade em prazer!

 

Mas os tempos são outros…… A realidade hoje em dia imprime homens e mulheres na cozinha! Homens qualificados na arte da culinária! Mulheres criticas quanto a sabores e aromas….

 

A cozinha passou de um recanto de afazeres domésticos para o melhor canto da maioria das casas! Muita prosa acontece ao redor da mesa de jantar… Muitas receitas são feitas a quatro, oito ou até mais mãos! A cozinha passou a ser o lugar mais frequentado da casa!
Cozinhas ditas “estilo americana” favorecem essa integração da cozinha a um espaço social da casa, reforçada pelo habito brasileiro de compor à uma visita um café ou uma refeição!

Tudo muito lindo e gostoso……

 

Mas qual o beneficio terapêutico propriamente dito?

 

Eu, enquanto terapeuta ocupacional, escolhi o recurso da culinária para atender crianças jovens e adultos com algum tipo de deficiência, atraso no desenvolvimento, autismo, distúrbios de aprendizagem ou de comportamento primeiro porque cozinhar é um enorme prazer para mim! E nos atendimentos doo essa verdade, essa intensidade, esse prazer, esse sabor, essa forma, isso tudo….. Segundo porque, enquanto terapeuta ocupacional, faço uma analise de atividade a ser desenvolvida no processo terapêutico de determinado paciente. E, ao fazer a analise da atividade de culinária, me deslumbro com a riqueza de recursos presentes ali!

 

Então vamos aos dez benefícios da culinária terapêutica:

 

1- organização e planejamento

 

Toda receita avaliada como a melhor a ser desenvolvida com determinado paciente pré supõe uma organização do espaço e do material a ser utilizado. Elencar os ingredientes e utensílios a serem utilizados faz parte do processo terapêutico, bem como organizar a seqüência da receita. Qual ingrediente usaremos primeiro? Toda receita tem um passo a passo…. Não podemos usar ingredientes aleatoriamente! Qual o tempo de preparo? E depois de pronta a receita, o que vamos precisar para saboreá-lá? Prato raso ou fundo… Garfo ou colher… Dessa forma, desenvolvemos as habilidades cognitivas de organização e planejamento durante todo o processo!

 

2- higiene

 

O ambiente da cozinha requer alguns cuidados a nível de higiene. Mãos limpas… Unhas cortadas e limpas….. Cabelo preso….. Enfim, abordamos questões de higiene pessoal como pré requisitos para se estar na cozinha. Colocar para a criança, jovem ou adulto essa questão da higiene sob a ótica da cozinha, fica muito mais leve do que abordar diretamente o assunto focando na sujeira e na falta de hábitos de higiene. O assunto limpeza e higiene fica contextualizado no processo da culinária terapêutica. Além da questão da higiene pessoal, amplia-se o assunto para higiene dos alimentos e da cozinha. Quais ingredientes temos que lavar antes de consumir? A importância de usar um talher limpo para cada ingrediente…. Não devemos usar a mesma colher para o sal, o açúcar, a farinha e o óleo! E finalizando o processo terapêutico, faz parte deixar a cozinha limpa e organizada! Dessa forma, a higiene referente ao auto-cuidado e referente ao espaço são desenvolvidas do inicio ao fim do processo!

 

3- aquisição e reforço de conceitos pedagógicos essenciais à alfabetização

 

O desenvolvimento pedagógico precisa da aquisição dos conceitos de cor, forma, tamanho (grande/pequeno) e noção de espaço (dentro/fora e em cima/em baixo) para a aquisição de letras, silabas e palavras. No desenvolvimento da receita, esses conceitos são estimulados na forma de conduzir a receita: vamos precisar da colher maior… Pegue uma vasilha que está no armário em baixo da pia…. Vamos por os pratos em cima da mesa…. Precisamos do legume de cor laranja…. Vamos por tudo dentro da panela…. Dessa forma, os conceitos vão sendo explorados e apropriados pelas crianças, jovens e adultos no processo da culinária terapêutica!

 

4- noções de matemática

 

Qualquer receita que nos dispomos a fazer traz nela as quantidades necessárias para que haja sucesso no resultado! Assim, compreender os números é primordial! Nas crianças, jovens ou adultos que ainda não adquiriram a noção de quantidade e quantificar o trabalho se desenvolve com receitas que sugerem a cada passo contar, como por exemplo uma salada de frutas cuja receita é 10 rodelas de banana, 8 pedaços de mamão, suco de 4 laranjas, 5 cubos de pêra e assim por diante….. Já para crianças, jovens e adultos que já sabem contar, dificultamos o passo a passo das receitas com conceitos matemáticos mais complexos, como meio abacate, dois terços da maçã, 100ml de leite, 200g de farinha, meio quilo de fubá, meia dúzia de ovos, o dobro da quantidade de óleo, e assim por diante…. Dessa forma, estimulamos o desenvolvimento da matemática a partir da culinária terapêutica!

 

5- memória

 

A memória é resgatada e estimulada quando, ao longo do processo, as crianças, jovens e adultos são encangados de qual a receita preferida da sua mãe? Qual o ingrediente que sua mãe mais usa na cozinha? O que você comeu ontem no almoço? Sua família tem alguma receita tradicional, que vem passando de geração em geração? Permeando o fazer da receita elegida para aquele atendimento, acontece um bate papo social com questionamentos curiosos que remetem a criança, jovem ou adulto ali presente pensar e resgatar informações de sua história e seu passado, propondo a ele não só resgatar sua memória, bem como exercitar laços familiares, promover a interação em família e reforçar vínculos afetivos.

 

6- habilidade com talheres

 

Freqüentemente as mães me procuram pois seus filhos fazem uso de colher para se alimentar, ou se já uso do garfo, não são hábeis com a faca, rodeada de todo receio desse instrumento. No preparar dos ingredientes, quando focado para o uso de talheres, a própria criança, jovem ou adulto faz uso dos talheres, onde as medidas provindas em gramas são substituídas por colheradas (100g eqüivale a 10 colheres de sopa). Dez rodelas de banana são solicitadas a serem colocadas na vasilha com garfo, uma a uma…. Os ingredientes a serem cortados são trabalhados pela própria criança, jovem ou adulto, onde utilizamos facas sem corte, a fim de primeiramente posicionar de forma correta o instrumento na mão bem como compreender seu uso (faca: o movimento se faz para frente e para trás). A maioria das frutas e os legumes cozidos são tranqüilamente cortados e fatiados com facas sem serra, ampliando a habilidade com o instrumento e minimizando os riscos de um instrumento cortante. Dessa forma, na culinária terapêutica aprimoramos e introduzimos o uso de talheres de forma indireta, promovendo essencialmente um amadurecimento no processo de autonomia e independência da criança, jovem ou adulto, referente a habilidade de se alimentar!

 

7- experimentação de novos alimentos

 

A seleção de alguns alimentos é muito comum em crianças em virtude da industrialização dos alimentos e hábitos de vida, o que impõe as crianças desde muito cedo a habituarem seu paladar com sabores artificiais. Crescem um pouco e são crianças que não gostam de frutas ou verduras, e vemos uma saúde comprometida…. Há ainda a problemática muito comum em crianças, jovens e adultos com autismo, que comumente fazem seleções aleatórias e rígidas para determinados alimentos. Na culinária terapêutica proporcionamos de forma lúdica o plantio e colheita de diversas frutas, legumes e verduras, focando o contato com uma nova fruta, legume ou verdura a partir do viés do nascer e crescer das plantas, da colheita, da curiosidade e da descoberta do que vem do pomar e do que vem da horta. Enfim, buscamos outros caminhos de contato da criança, jovem e adulto com novas frutas, verduras e legumes que se concluem na experimentação desse sabor. Provar essa nova fruta é a conclusão do processo, e não o foco. Na culinária terapêutica sempre introduzimos novos ingredientes quer seja para ampliar paladar, bem como ampliar hábitos saudáveis!

 

8- noções de física e química

 

A arte de misturar alguns ingredientes enche de brilho os olhos de crianças, jovens a adultos na culinária terapêutica! A beleza estética da transformação da cor, do estado e da temperatura encantam pela surpresa, porém são transformações provindas de reações químicas e físicas que acontecem ao misturarmos determinados alimentos, bem como os expor a alterações de temperatura, seja para quente ou para frio! O que chega para nossas crianças como surpreendente, na verdade se trata de aprendizados acerca de física e química! A fermentação do pão, o bolo de cenoura que não fica exatamente laranja, o congelamento da água, o sal iodado, o açúcar cristal, mascavo ou refinado, provindos da cana de açúcar….. Enfim, uma gama de conhecimentos são agregadas ao desenvolvimento da criança, jovem e adulto na culinária terapêutica!

 

9- independência

 

Promover a independência de crianças, jovens e adultos é o ápice da terapia ocupacional! Na culinária terapêutica se propõe a independência no que se refere a alimentação e desempenho no ambiente da cozinha. Saber distinguir e guardar alimentos de geladeira dos de armário, que não precisam de refrigeração, minimamente saber fazer um suco, um leite com achocolatado e um pão com margarina, lavar uma louça, arrumar uma mesa para o jantar, lavar uma salada, descascar um legume, enfim…. Habilidades corriqueiras que fazem total diferença na independência e autonomia de um ser humano. Desassociar essa criança, jovem ou adulto do outro, do qual era dependente, passando assim a ser ativo na cozinha, para pequenos, médios ou grandes afazeres, ou um exímio ajudante para deliciosos momentos de refeição em família!

 

10- afeto

 

A questão do alimentar e ser alimentado nos remete a questões emocionais importantes. Desde o nascimento, no aleitamento materno, se constrói essa relação ímpar de nutrir e dar afeto numa intensidade altíssima! E esse cuidado, esse afeto e essa verdade perduram ao longo da vida na relação mãe/filho. Porém, em se tratando de mães de filhos especiais, esse cuidado efetivo referente a alimentação se perdura por muitos anos….. Podendo chegar inclusive a idade adulta na mesma intensidade de um bebê….. Por superproteção ou realmente necessidade, o panorama são de crianças, jovens e adultos assistidos quase que integralmente. Na culinária terapêutica proporcionamos uma inversão saudável de papéis, colocando a criança, jovem ou adulto na função de cuidador, do indivíduo que alimenta, que fornece o alimento e o afeto embutido naquela receita, para uma família que passa de cuidadora para cuidada, se permitindo ser cuidada, receber e relaxar…. Um processo de mão dupla extremamente rico para o amadurecimento emocional da família!

 

 

 

E é por esse caminho que caminho…. E são por essas verdades que há mais de dez anos trabalho com culinária terapêutica!
Por tanto sabor, tanto amor, tanta verdade, tanto tempero e tanto desenvolvimento que a cada dia agradeço pelo alimento de hoje…
Bom apetite para nós!

 

Por: Raquel Ortega