Você mora sozinho? Se não, deve conhecer alguém que mora, não é mesmo? Esta é uma escolha cada vez mais frequente no Brasil. Estar sozinho não é mais sinônimo de infelicidade, porém, em época de crise, pandemia e isolamento social, as emoções borbulham para todos. Vamos entender como a pandemia afeta as pessoas que vivem sozinhas.
Lembra da época em que viver sozinho era sinônimo de ter uma vida fracassada? As mulheres tinham o fantasma da “tia solteirona”, ou era a detestada da família ou trazida para morar com todos. Você já deve ter ouvido essa história em alguma conversa com seus avós ou tios mais velhos, ou ainda em leituras de romances antigos. Por exemplo, no livro “O amor em tempos do cólera” a personagem principal, Fermina Daza, morava com uma tia solitária que foi trazida pelo pai para não morrer sozinha. Não por causa do cólera, mas porque ninguém vivia sozinho. A realidade de ser sozinho afetava o mundo masculino também. A personagem Florentino Ariza, eterno apaixonado do mesmo livro, sofria com boatos por viver sozinho, sem casar.
Mas não estamos no tempos do cólera, estamos no tempo do Covid-19 e a realidade mudou. Os dados nos ajudam a ter uma noção disso:
– Em 10 anos (de 2005 a 2015), o número de pessoas que vivem sozinhas no Brasil saltou de 6 milhões para 10,4 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Trata-se de um aumento de 73,3%;
– Ao contrário do que se possa imaginar, boa parte dessas pessoas (48%) decidiu morar só por vontade própria;
– 72% acreditam que viver sozinho dá mais liberdade para gastar seu dinheiro;
– Eles se sentem mais independentes (25%), livres (23%) e com maior privacidade (50%).
– Apenas 1% se sente abandonado, 3% triste e 10% reclamam do peso da solidão;
– O que parece triste para alguns é a opção de quase 30% dos brasileiros adultos.
Parece que as “tias e o tios solteirões” agora podem curtir a vida, não é mesmo?
Bom, mas morar sozinho não é sinônimo de ter todo o tempo do mundo livre. Afinal, a vida acelerada de hoje traz uma infinidade de ocupações: trabalhos, cursos, exercício físico, grupos sociais… Os afazeres são tantos que muitas pessoas mal param em casa e não ficam de fato sozinhas. Podem passar o dia rodeadas de pessoas e distraídas com o que precisam fazer. Aliás, muitos nem percebem suas casas como um lar, lidando com o “canto” em que moram apenas como um dormitório. Essa era a realidade de muitas pessoas antes da pandemia, mas, e agora, o que muda com o distanciamento social?
Morando sozinho durante a pandemia
Em época de Covid-19 e distanciamento social (em muitos lugares, lockdown) os distratores, como as atividades fora de casa e as várias companhias ao longo do dia, não existem mais e, assim, de fato as pessoas que moram sozinhas ficam sós.
A relação com a casa muda: Não são poucos os relatos de quem agora consegue olhar para a sua casa e tentar significá-la como o seu canto, um lugar para deixar aconchegante e não apenas um lugar de passagem.
A relação com os nossas atividades mudam: Algumas pessoas encontraram tempo sem fim para o trabalho remoto e outras ficaram perdidas entre seus afazeres domésticos.
A relação com os nossos sentimentos mudam: Os relatos são muitos, desde as pessoas que estão bem e com hábitos de cuidado, outras que já começaram o isolamento social angustiadas e até as que esteão sentindo o peso da solidão agora, meses depois.
A relação social muda: Enquanto antes conseguíamos companhia fácil, hoje não dá para chamar um amigo para um café, marcar encontros, alguém para ajudar na limpeza da casa ou apenas ir caminhar e ver umas pessoas na rua.
É, uma coisa é certa, morar sozinho antes da pandemia tem um tom, morar sozinho durante a pandemia tem outro bem diferente. Talvez um dos pontos mais importantes dessa diferença seja que morar sozinho não significa viver sozinho. Vamos entender melhor!
O ser humano é um ser social
Você já deve ter ouvido falar que somos construídos na relação com as outras pessoas, não é mesmo? Para entender melhor o que isso quer dizer veja esse trecho do romance do autor Valter Hugo Mãe:
“O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-te pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes.” (trecho retirado do livro Desumanização, 2014)
A partir das nossas relações nos construímos e sabemos quem somos. Mesmo morando sozinhos, somos filhos, somos amigos, colegas de trabalho, vizinhos e uma pessoa que interage com todas as outras para qualquer coisa na vida.
A psicóloga americana, Susan Pinker, tem apresentado pesquisas sobre a importância da interação social na vida do ser humano enquanto o principal fator de saúde física e mental. Os resultados das pesquisas mostram a interação social como a principal causa de longevidade! Que você deve ter ao menos três pessoas de confiança para pedir ajuda e interagir socialmente com constância.
É possível termos essas realidades que a Susan Pinker nos traz morando em qualquer lugar. É uma postura relacional diante da vida e diante das pessoas que encontramos pelo nosso caminho.
Já que morar sozinho não significa ser sozinho, vamos explorar outra esfera que pode estar afetando as pessoas nesta pandemia: estar sozinhos de nós mesmos.
Solitude e Solidão
Esses dois conceitos estão sendo abordados com bastante frequência nos últimos tempos e através deles entendemos quando estar só pode significar dor ou liberdade.
Quando o sentimento é de sofrimento quando estamos sós, chamamos de solidão. Trata-se do vazio interno, por isso muitos sentem solidão mesmo com pessoas ao redor, estão sozinhos de si mesmos.
Enquanto a solitude traz a “condição de quem se isola propositalmente ou está num período de reflexão e de interiorização” (Dicciónário on-line de português). A solitude é estar cheio de si mesmo, num silêncio externo para escutar-se. Muitas pessoas precisam de momentos sozinhas para fazer essa interiorização, sem sofrimento, apenas com sua própria companhia.
Mas como transformamos o sentimento de solidão em solitude? Bom, para responder isso, vamos precisar voltar para as relações!
Ainda vivemos em uma realidade onde circula o fantasma social de que se não estamos participando de algo, significa que não somos do grupo ou seremos excluídos. É desse raciocínio que nasce aquela ânsia de estarmos sempre conectados ou presentes para nada perder.
Quando focamos nessa avaliação externa, ela toma lugar dentro de nós e ficamos vazios de nós mesmos. Porém estamos cada vez mais em um processo de desprendimento dos outros enquanto necessidade de aprovação. Quanto mais nos desprendemos dessa avaliação, mais as relações passam a existir enquanto algo essencial de troca afetiva, sem expectativas, afinal o ser humano é essencialmente social. E quando estamos sozinhos vivemos a solitude.
Bom, agora já sabemos que quem mora sozinho não é, necessariamente, sozinho. Sabemos a importância das relações para nossa saúde e entendemos que solidão é diferente de solitude. E agora, que tal passear pelas diversas formas de cuidar da saúde mental quando se mora só?
Como cuidar da sua saúde mental?
Quando vivemos uma crise como a que estamos, os sentimentos podem virar uma grande bagunça dentro de nós. A privação das relações deixa de ser escolha e passa a ser condição e assim a solitude pode se transformar em solidão. Muitos hábitos não saudáveis podem surgir. A dificuldade de voltar ao convívio social pode aparecer e, aumentando nossa rigidez nas relações, a saúde mental vai pro espaço. O que podemos fazer para mudar isso?
Todas as recomendações que encontramos sobre o que fazer quando se está sozinho nesta pandemia, podemos resumir da seguinte forma:
Faça uma rotina, pratique exercício físico, mantenha contato com as pessoas por videochamada, faça meditação, tome cuidado com informações demais, então busque fontes confiáveis e acesse poucas vezes por dia, mantenha hábitos alimentares saudáveis fazendo um cardápio seu e divertindo-se na cozinha, mantenha também a casa limpa e organizada e inclua práticas de autocuidado.
Estas dicas são mesmo importantes para mantermos a saúde mental! Mas vamos passear para além delas? Veja estes pontos:
- Ative sua criatividade: estar só te dá toda a liberdade de fazer e inventar seus dias e o que terá neles. Erre, deixe a surpresa vir, corra riscos, use seu tempo, faça pausas e brinque com suas imperfeições. É desse processo que nasce a inovação de você mesmo.
- Use a tecnologia a seu favor:o recurso que você tiver, redes sociais, aplicativos e um mundo inteiro para explorar! Você pode encontrar os conteúdos do seu interesse, o que te diverte e onde se sente mais confortável (ou desafiado!) para se conectar com outras pessoas.
- Faça nada:como falou o Emicida: “dormir por dormir”. Ninguém precisa ser produtivo o tempo inteiro. Pensar em nada, ouvir música e cantar ou dançar para nada, assistir qualquer filme ou série. Momentos de ócio pelo ócio no meio de tudo,também pode fazer descansar.
- Viva suas relações: nunca é tarde para trazer relaçõespara perto e torná-las mais próximas, retomar contatos ou quem sabe fazer novos! Todos estão se reinventando. Aproveite para conversar com quem encontra pelo caminho no pouco que você socializa presencialmente: com o porteiro, o vizinho no hall do prédio ou da janela do apartamento, a pessoa que passa longe na rua e o entregador que chega até a sua porta de máscara. Cada pessoa é uma chance de olhar nos olhos e nos sentirmos juntos.
- Encontre você e explore-se:está em você tudo o que você pode querer viver e a potência para desenvolver. Vocêé um mundo de informações para ser explorado e expandido. Escreva, pergunte-se, tenha conversas reflexivas (sejam elas virtuais, por telefone ou por onde der), reconheça o que pode ser aliviador de tensão.
Sobretudo, ao encontrar você mesmo, você encontrará a coletividade. Ao reconhecer-se você certamente encontrará o que há de mais humano em você, conectando-se com o que há de mais humano em qualquer pessoa. Trazendo para perto do seu coração a certeza de que não está sozinho.
Sabemos que esses passos nem sempre são fáceis, principalmente quando envolvem autoconhecimento e o que descobrimos quando ficamos perto dos nossos sentimentos. Digerir as emoções e encontrarmos nossos novos lugares, enfrentando nossos novos desafios pode ser doloroso. Mas lembre-se, é através de relações facilitadoras que organizamos o que sentimos e encontramos saídas. Procure alguém de confiança e nós também estaremos por aqui, prontos para nos relacionarmos e ajudarmos você.
Por: Doralina Marcon